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sábado, 12 de outubro de 2013

O excesso de diagnósticos de hiperatividade em nossas crianças - esteja atento.

Recentemente tenho ouvido com muito frequência: meu filho é hiperativo. Ouço isso tanto em situações cotidianas quanto em meu consultório e, mesmo não sendo especialista, vejo que muitas vezes esse diagnóstico parece não se encaixar. Uma grande amiga minha, que é ótima psiquiatra infantil e excelente mãe,  escreveu este texto esclarecedor sobre o transtorno de déficit de atenção.


"Apesar de ser conhecido na literatura médica há pelo menos um século, o transtorno de déficit de atenção/hiperatividade (TDAH) ainda é alvo de controvérsias. Para complicar, o acesso a informações tendenciosas circulantes na mídia contribuem para confundir ainda mais os pacientes ou pais que buscam algum esclarecimento sobre o tema.

            As opiniões geralmente se polarizam entre as visões científica e sociológica, tanto no meio acadêmico médico e psicológico quanto em outros segmentos da sociedade, como a educação e a mídia em geral. Infelizmente, posições partidárias e dicotomizadas apenas emperram o diálogo e as possibilidades de desenvolvimento de práticas e saberes sobre o tema, pois obviamente o sofrimento humano não pode ser dividido, a grosso modo, de acordo com suas origens “biológica” e “psicológica”.

            Por um lado observamos uma tendência em considerar o TDAH como uma “doença”, decorrente de alterações biológicas na fisiologia cerebral, e portanto, sujeitas a abordagem medicamentosa. Entretanto, também observamos a existência de posições no extremo oposto, de que o TDAH “é uma invenção da indústria farmacêutica para vender remédios” ou que o transtorno é uma forma de medicalização de comportamentos “culturalmente inaceitáveis”. É bom tomar cuidado com posições extremas.

            É certo que o tema aponta uma condição de sofrimento, com sintomas que, dependendo da intensidade, do contexto e do prejuízo imposto sobre o funcionamento global do indivíduo, pode indicar uma condição clínica. E se essa pessoa que sofre pode sim se beneficiar de uma associação de tratamentos que podem ou não incluir o uso de medicamentos, a abordagem psicoterapêutica ou psicopedagógica ou orientação aos pais da criança ou adolescente. Entretanto, é necessário destacar que a avaliação deve ser realizada de forma muito cuidadosa por profissionais experientes, respeitando-se as características individuais do paciente e de seu contexto social e familiar.

            A linha divisória entre a normalidade e o TDAH tem sido traçada de forma diferente em culturas diferentes, de acordo com instrumentos diagnósticos muito diferentes. Por exemplo, nos Estados Unidos, onde predomina o sistema DSM os pesquisadores Visser  e Lesesne relataram que 7,8% das crianças americanas entre 4 e 17 anos apresentaram diagnóstico de TDAH. No Reino Unido, por sua vez, a prevalência é de 1% a 3% ( tanto para o sistema DSM-IV quanto CID-10), sendo que os britânicos tradicionalmente usam critérios muito rigorosos para hiperatividade, que enquanto transtorno grave afeta por volta de 0.1% de suas crianças. E na França, onde os psiquiatras infantis utilizam outro sistema diagnóstico, a percentagem de crianças diagnosticadas e medicadas para o TDAH é inferior a 0,5%. Estes diferentes percentuais mostram que uma abordagem padronizada desta questão está longe, senão impossível...

            As principais características apresentadas são agitação, desatenção e impulsividade marcantes. É comum o relato de que a criança não para quieta, não presta atenção às aulas, tem dificuldade em persistir em qualquer tarefa, troca de atividade frequentemente e distraem-se facilmente, envolvem-se em confusões e brigas. Em muitos casos os pais ou a escola se queixam de que a criança é “mal-criada”, “mal-educada”, “respondona”, “só faz o que quer”, “não obedece”, não aceita regras”, etc...

            Uma questão fundamental relativa ao diagnóstico e que ele deve ser pensado e discutido com calma e muito cuidado, pois muitas vezes pode gerar angústia ou até expectativas irreais nos pais. É importante compreender o contexto em que estas queixas ocorrem, dentro de uma compreensão clínica mais ampla da criança, de sua história social, escolar e familiar. Caso contrário corre-se o risco de um diagnóstico indevido ou mesmo de um plano terapêutico limitado a intervenções voltadas apenas para a criança, enquanto única “responsável” pelas alterações de comportamento. É imprescindível que um olhar atento a cada caso possa identificar se a presença de tais queixas apresenta-se de forma invasiva e qualitativamente prejudicial ao bom desenvolvimento da criança. Outra questão é que uma criança com comportamento mais exuberante pode ser muito desgastante para pais e professores, o que exige uma avaliação cuidadosa de forma a evitar um rótulo diagnóstico precipitado.

            A medicação é um recurso disponível mas é necessário saber como e em que situações ela deve ser usada. Algumas vezes a dificuldade no controle da atenção é tão grave que é interessante poder usar a medicação como uma das ferramentas, mas não como a única. Afinal de contas, a medicação pode em alguns casos amenizar uma situação crítica, mas ela não vai “criar” habilidades ou novas atitudes diretamente e que sejam duradouras. É necessário levar em consideração que em muitos casos a criança apresenta dificuldades em se auto-regular em função de regras e limites característicos de cada situação, habilidade que é construída muito gradativamente, ao longo dos anos de seu desenvolvimento, sempre a partir da mediação de situações de impasse ou conflito por uma segunda pessoa mais madura ou com mais recursos psíquicos para ajudar a criança a lidar com frustrações do cotidiano. Afinal, limites claros e aplicados de forma coerente, fazem as crianças se sentirem seguras e protegidas. Apesar da palavra “não” trazer frustração à criança (e muitas vezes mexer com sentimentos de culpa dos pais), é necessária ao estabelecimento de limites internos, que por sua vez  possibilitam que a criança seja resgatada da tirania de seus próprios desejos.

            Este trabalho de mediação está sempre implícito na relação entre pais e filhos durante qualquer interação ou entre professor e aluno no cotidiano da sala de aula, ou até mesmo entre colegas e parentes. E é a partir deste somatório de experiências que a criança “aprende” a se comportar ou incorpora, inconscientemente, valores ou atitudes que determinam sua postura diante das diversas situações sociais.  Mas tomemos cuidados com a simplificação das coisas, pois é claro que também devemos levar em consideração a combinação complexa de uma diversidade de situações, como por exemplo, a presença de dificuldades emocionais da criança ou de seus cuidadores, a possibilidade de uma dinâmica familiar conturbada ou até mesmo dificuldades do sistema educacional em lidar com diferenças individuais. Ou seja, o problema da capacidade de  dirigir a atenção e se organizar em função de prioridades e objetivos exige também o recurso de adiar a satisfação e suportar frustrações, possibilitando o controle dos impulsos e a modulação do comportamento em função de situações diferentes. Se a criança ou o adulto tem algumas destas dificuldades e por isso apresenta sofrimento considerável, é possível que esta seja reconhecida como uma entidade clínica sim, mas o entendimento e discernimento cuidadoso da situação é muito importante, tanto para descartar rótulos diagnósticos indevidos quanto para adequar a abordagem às características e necessidades de cada pessoa".

Por Iolanda de Salles F. Carvalho (Psiquiatra)

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